Com reconhecimento internacional por sua luta em defesa dos indígenas e pela preservação ambiental, Sonia Guajajara, eleita pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo, conseguiu levar as demandas e a presença dos povos originários ao mais alto escalão do governo. Em 2022, a ativista fez história e se tornou a primeira deputada federal indígena eleita pelo Estado de São Paulo, mas não chegou a assumir o cargo, pois, em 2023, foi escolhida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para comandar o Ministério dos Povos Indígenas, Pasta inédita no Brasil. Embora celebre os avanços conquistados, Sonia reconhece que ainda é impossível superar, em quatro anos, o legado de mais de 500 anos de opressão e violação dos direitos de quem vive por aqui muito antes da chegada dos portugueses.
RAIO X
Nome: Sonia Bone de Sousa Silva Santos
Aniversário: 6 de março
Onde nasceu: Arariboia (Terra Indígena), no Maranhão
Onde mora: Brasília (Distrito Federal)
Formação: Letras e Enfermagem, com pós-graduação em Educação Especial
Qual o balanço da sua gestão nesses dois anos à frente do Ministério?
A política indigenista foi retomada após o abandono da gestão ada. Com o direito territorial indígena como meta prioritária, ampliamos as demarcações de TIs (Terras Indígenas) e a emissão de portarias declaratórias, assim como iniciamos desintrusões de territórios. Além disso, garantimos na gestão pública federal a premissa de que a agenda indígena é um tema transversal que precisa ser tratado com medidas concretas por diversos Ministérios, com orçamento específico. Em apenas dois anos de Ministério, já foram homologadas 13 TIs, número superior às 11 homologações alcançadas na década anterior à criação da Pasta. Além das novas homologações, avançamos na promoção dos direitos territoriais indígenas por meio da de 11 portarias declaratórias pelo Ministério da Justiça, em articulação com o MPI (Ministério dos Povos Indígenas). Antes disso, foram seis anos sem nenhuma portaria declaratória assinada. Também estamos realizando um esforço intensivo para a promoção do direito ao usufruto exclusivo de seus territórios pelos povos indígenas, como dita a Constituição. Já concluímos quatro desintrusões, com a retirada de invasores e de atividades ilegais dos territórios indígenas. Duas outras desintrusões continuam em curso, na TI Munduruku, no Pará, e no território Yanomami, onde iniciamos a primeira política permanente de presença estatal no território, com a implementação da Casa de Governo em Boa Vista.
Quais medidas estão sendo adotadas para reorganizar os territórios e adequar as políticas públicas e o orçamento, de forma a garantir que a população indígena em contextos urbanos tenha o pleno aos seus direitos, especialmente nas áreas de saúde, educação e preservação de suas práticas de economia tradicional?
Ainda no primeiro semestre deste ano, está prevista a realização do Seminário Inclusão, Direitos e Desafios dos Indígenas em Contexto Urbano. O evento será um espaço de diálogo e consulta, com participação de lideranças indígenas, e tem como objetivo identificar e discutir as principais demandas e desafios enfrentados por esses povos, muitas vezes, distintos dos desafios vivenciados por aqueles que permanecem nas aldeias. Neste seminário, nosso objetivo é aprofundar o diálogo sobre esse aspecto, promovendo um espaço onde representantes indígenas, gestores públicos e especialistas possam compartilhar conhecimentos, experiências e práticas. A criação de políticas públicas adaptadas é crucial para garantir que esses cidadãos recebam o e necessário em áreas fundamentais como saúde, educação, moradia, entre outras. É preciso que fique cada vez mais evidente que os indígenas são cidadãos brasileiros, que devem ter seus direitos garantidos, como saúde, educação, segurança, entre outros. Assim como dito na resposta anterior, reforçamos que a questão indígena é uma responsabilidade brasileira. É necessário aos entes federativos, estados e municípios, incluir as políticas voltadas aos indígenas no orçamento, com a instituição de secretarias indígenas preferencialmente lideradas por indígenas da região, pois compreendem os desafios regionais para buscar soluções junto aos órgãos competentes.
O Ministério obteve uma série de avanços sociais, mas ainda não conseguiu mitigar as violências contra os indígenas, principalmente nas áreas rurais. Há algum planejamento para empreender ações efetivas de proteção à vida e aos territórios indígenas?
A violência contra os povos indígenas é resultado de uma herança colonial que ainda permanece em nossa sociedade. O Brasil nunca superou o racismo e o colonialismo e é por isso que no Ministério também temos a missão de ‘reflorestar mentes’. Porque estes são cenários que resultam de séculos de opressão e violação de direitos. São questões que têm uma base estrutural que as sustentam. Além disso, observamos o avanço de ideias fascistas e supremacistas crescentes em todo o mundo, não só no Brasil, que acabam por estimular mais violência contra os povos indígenas. Parte desses desafios é resultado dos modos hegemônicos de relação humana com o ambiente e com todos os seres viventes. É resultado da exploração predatória da natureza, das relações desiguais de poder na sociedade, das diferenças de o a direitos e participação política, da concentração de renda e riqueza por poucos, enquanto a desigualdade se acentua para muitos. Como Ministério, o nosso esforço tem sido de defender os direitos indígenas em suas diversas esferas, na educação específica e diferenciada, nos direitos das mulheres indígenas e contra as violências particulares que vivenciam dentro e fora de seus territórios, nos direitos das pessoas indígenas LGBTQIA+, entre outros. E temos uma atenção especial aos direitos territoriais indígenas, prioritários para o Ministério. Assumimos a garantia dos direitos territoriais como ponto de partida para outras políticas públicas para os povos indígenas, por isso, a retomada das demarcações foi a política prioritária nestes dois anos, em conjunto com as operações de desintrusão e retirada de invasores das TIs. Parte da violência contra os povos indígenas tem sua raiz nos conflitos fundiários. Diante do ivo de demarcação de TIs no Brasil e do atraso referente ao prazo estabelecido pela Constituição, temos buscado estratégias que garantam a devolução dos territórios tradicionalmente ocupados aos povos indígenas, para assegurar seu direito de usufruto exclusivo. Esses são alguns exemplos, mas temos muitas iniciativas em curso com esse objetivo. Embora saibamos que não conseguiremos resolver mais de 500 anos em quatro, é preciso reconhecer que a presença dos povos indígenas no primeiro escalão governamental elevou em muito a efetivação dos direitos indígenas nas instâncias de decisão da República.
De que maneira o marco temporal impacta negativamente os direitos dos povos indígenas?
Nós, povos indígenas, somos reconhecidos como originários por ocuparmos os nossos territórios antes mesmo da chegada dos colonizadores ao País. Tanto a Constituição Federal, quanto os tratados internacionais aos quais o Brasil é signatário, como a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), reconhecem e defendem o direito territorial indígena. As terras tradicionalmente ocupadas, citadas em nossa legislação, remetem ao direito originário indígena aos territórios que vivemos, por isso, não há um marco temporal que determine quando se deu essa ocupação. A garantia do direito originário dos povos indígenas aos seus territórios é premissa para que tenham os seus demais direitos constitucionais e humanos garantidos, para que mantenham seus modos de vida, suas culturas e seus conhecimentos, conforme previsto no artigo 231 da Constituição. A garantia desse direito não traz benefícios apenas aos povos indígenas, mas a toda sociedade, com a proteção dos ecossistemas desses territórios. Por todas essas razões, o Ministério dos Povos Indígenas é contra o marco temporal e esse sempre será nosso posicionamento como Pasta. A comunidade internacional não reconhece sequer a existência de um marco temporal para abordar questões envolvendo territórios indígenas, assim como o STF (Supremo Tribunal Federal) já declarou a tese inconstitucional. Analisando o cenário de conflitos no campo a partir do segundo semestre de 2024, as disputas fundiárias dispararam com ameaças, agressões e mortes em diferentes estados, sendo o Paraná e o Mato Grosso do Sul os mais graves.
A ministra destacou em entrevista que a preservação dos territórios indígenas é fundamental para proteger a biodiversidade do planeta. Como a demarcação desses territórios contribui diretamente para a conservação ambiental?
Todo o planeta já sofre as consequências das mudanças climáticas, a natureza já está em transição. Estamos vivendo uma alternância entre períodos de secas, inundações e queimadas. Este já não é mais um problema do futuro e sim um problema que estamos vivendo no presente. E, por isso, precisamos agir agora. As Terras Indígenas são exemplos de conservação, reafirmando o papel fundamental dos povos indígenas na conservação global da biodiversidade e no equilíbrio climático do planeta. Nossos modos de vida são baseados no respeito à Mãe Terra, no respeito à natureza a qual pertencemos, a todos os seres que partilham esse tempo e espaço com os seres humanos, e na prevalên-cia dos interesses coletivos em relação aos interesses individuais, no cuidado e na vivên-cia em comunidade. Demarcar e proteger os territórios indígenas é o caminho para a garantia do nosso futuro neste planeta.
Quais são as ações necessárias para transformar o pensamento colonial ainda presente na sociedade, conforme a Sra. mencionou?
A ação mais urgente é finalizar os processos de demarcação de Terras Indígenas no Brasil, o que garante a reprodução dos costumes e bem viver dos 305 povos indígenas que habitam este País. Além de cessar imbróglios jurídicos e ciclos de violência, a demarcação possibilita a proteção territorial que precisa ser mantida e zelada pelo Estado brasileiro. A Lei 11645/2008 contribui de uma perspectiva de formação intelectual para compreensão dos processos de escravização, exclusão e genocídio aos quais foram submetidas as populações indígenas e negras no Brasil e aponta caminhos para que reparação histórica ocorra de modo justo e o mais célere possível. A presença de indígenas, quilombolas, pessoas negras e LGBTQIA+ em cargos de tomada de decisão viabiliza a incidência direta na máquina do Estado e, interiormente, permite a criação de leis, medidas e projetos que combatam ações do Estado, que muitas vezes assenta o pensamento colonial por meio do Executivo, Legislativo e Judiciário.
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